quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008



As Personagens Femininas em Machado de Assis


Maria Lúcia Silveira Rangel


Romantismo – Como Machado de Assis escreveu romances e contos dentro do Romantismo e do Romantismo/Naturalismo, vamos abordar ambas as Escolas de modo breve.
O Romantismo foi uma escola literária determinada pela subida da burguesia ao poder, em conseqüência da Revolução Francesa. Ela devia mostrar através de suas obras, especialmente o romance, que se tornou o gênero preferido pela nova Escola, os valores defendidos pela burguesia – dentro das descrições sensíveis da natureza, a história construída a partir de um eixo narrativo que mostra a idealização de um par amoroso, o qual supera os obstáculos surgidos (sempre carregados de mistério), para chegar ao casamento, ficando preservados nas narrativas os valores tão caros à burguesia – o matrimônio, a religião, a pureza e a fidelidade por parte da heroína, e a nobreza de caráter e a coragem por parte do herói.
O Romantismo estreou no Brasil em 1841 com A Moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo e viveu no cenário literário até 1881, com as primeiras obras publicadas – Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Joaquim Maria Machado de Assis e O Mulato, de Aluízio Azevedo, dentro do Realismo/Naturalismo, a nova Escola que se seguiu ao Romantismo, opondo-se a ele.
Com o passar das décadas o Romantismo desgastou-se já por sua postura idealizante que dificultava a verossimilhança dos caracteres, já pelo exagero das tramas sentimentais.
Machado de Assis e o Romantismo – Nesse panorama em que ainda reinava o Romantismo, embora enfraquecido pelos fatores mencionados, surge o primeiro romance romântico de Machado de Assis, o qual vinha participando da vida literária desde 1860.
Em 1872, Machado de Assis nos dá Ressurreição, um romance de caracteres e temperamentos, logo seguido por A Mão e a Luva (1874), Helena (1874) e Iaiá Garcia (1878).
Se examinarmos os romances românticos dessa época, sentiremos a discrepância entre eles e os de Machado de Assis.
Entre os românticos, a heroína é construída a partir de cânones que emprestam à figura feminina um papel dependente, não tendo ela ação principal dentro da narrativa, a qual é praticada pelo herói, feito de nobreza de caráter e força.
Em oposição aos autores românticos, Machado de Assis, mesmo preso às características do romance do século XIX, dá às heroínas um relevo cujo perfil vai-se intensificando com o surgimento da narrativa; assim, as personagens femininas machadianas são mais fortes e objetivas, capazes de conduzir a ação, apesar do predomínio da trama romanesca não ter se esvaziado.
Em Ressurreição, as diferenças de temperamento e caráter entre Félix e Lívia impedem o casamento entre ambos, partindo dela o rompimento.
Em A Mão e a Luva, temos em Guiomar um exemplo da mulher que elege Luiz Alves racionalmente, pelo fato de possuir ele as qualidades que lhe permitiam satisfazer suas ambições.
Também em Helena, a heroína se faz passar por irmã de Estácio, a fim de receber parte da herança; mas apaixona-se pelo falso irmão e é correspondida; no final, obrigada a confessar seu embuste, para não passar por uma aventureira, deixa-se morrer.
E ainda em Iaiá Garcia, a personagem mais atuante é Estela, que verdadeiramente conduz a ação promovendo a felicidade dos que a cercam, como Luiz Garcia, Iaiá e Jorge.
Com essas diferenças entre as personagens – de um lado o romantismo idealizado com fraca verossimilhança psicológica das heroínas devido à própria concepção romanesca – as personagens femininas de Machado de Assis apresentam, mesmo não estando à altura das que o autor iria mais tarde produzir, um significado preciso na história do romance brasileiro, alargando as perspectivas do romance, especialmente urbano, com novas aberturas para o romance psicológico, no qual foi mestre sem contestação.
Naturalismo – O Naturalismo chegou ao Brasil atrasado, depois de um longo processo romântico. Ao contrário do Romantismo, que procurou suas origens dentro do próprio país, sendo considerado uma Escola nacionalista, o Naturalismo foi importado da Europa.
No século XIX, temos algumas modificações no panorama sociopolítico e econômico europeu; a economia caminha de mãos dadas com a industrialização progressiva e a vitória total do Capitalismo; o progresso científico, a invenção de novas máquinas e o socialismo utópico criaram o cientificismo geral do pensamento do qual deriva o realismo político, tudo confluindo para a grande luta contra o Romantismo e a derrota final deste; isso, em termos de Europa, porque no Brasil, o Romantismo e o Naturalismo conviveram juntos, sem conseguir resolver a tensão criada entre o real e o ideal, num descompasso típico de uma Escola importada.
Machado de Assis e o Realismo/Naturalismo – Em 1878, em uma resenha, Machado de Assis critica a crueza com que são mostradas as cenas de adultério em O Primo Basílio, de Eça de Queiroz, publicado dentro dos cânones do Naturalismo português, ao mesmo tempo que apresenta critérios seguros para a nova Escola que se delineava no Brasil.
Com essas diretrizes, Machado de Assis escreve seu primeiro romance realista/naturalista – Memórias Póstumas de Brás Cubas, em 1881.
Nessa obra, o autor, definitivamente rompido com o Romantismo, retira de seu estilo tudo que seja enfático ou idealizante. O narrador deixa de ser o omnisciente e a narrativa é feita em primeira pessoa. Machado de Assis procura, não a fixidez psicológica dos personagens para tornar-se verossímil, mas suas sensações e estados de consciência às vezes díspares que acontecem na mente humana. Teve mão leve para não carregar a obra com tons naturalistas, isto é, para não se perder nos determinismos de raça, meio e momento de Taine.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, temos a primeira personagem feminina construída sob a ótica da nova Escola – Virgília – cujo adultério com Brás Cubas é levado a efeito menos por paixão amorosa e mais pelo sensualismo.
"Achamo-nos jungidos um ao outro com as duas almas que o poeta encontra no Purgatório... e digo mal, comparando-nos a bois, porque nós éramos outra espécie de animal menos tardo, mais velhaco e lascivo." Machado de Assis, 1957, p. 184.
Sem seguir a cronologia de suas obras realistas temos em Capitu de Dom Casmurro (1899) sua principal criação de uma personagem feminina.
Ela é a mais discutida, a mais famosa, e seria repetição falar sobre a grande dúvida em que o escritor deixa o leitor sobre o adultério da esposa de Bentinho – o romance abre-se num leque com opções a favor ou contra o fato.
No entanto, o sensualismo volta a marcar a personagem (especialmente na cena em que Capitu seduz Bentinho), construída com a maior sutileza psicológica, mostra o apelo sexual no comportamento de uma mulher ainda adolescente.
Outra personagem feminina de Machado de Assis é a Sofia de Quincas Borba (1891), romance em terceira pessoa que narra a paixão de morte de um provinciano ingênuo. Nele, Sofia aparece como uma mulher coquette, que seduz o pobre Rubião, escudada nos interesses do marido para depois abandoná-lo em sua demência e ruína.
Já Fidélia de Memorial de Aires (1908) é contida; viúva, guarda o mais que pode a memória do marido; mas aceita casar-se com Tristão; Fidélia, mesmo sem ser provocante como as demais heroínas, aprecia o estado do matrimônio.
Através dessas quatro personagens, sentimos que Machado de Assis, para aprofundar suas criações femininas, tornando-se verossímeis e plenas, dotou-as de forte passionalidade que vai ser usada como realização sexual dentro do casamento, como no caso de Fidélia, ou fora dele, como é o caso de Virgília e Capitu; ou ainda como um recurso para a realização de suas ambições materiais em Sofia.
Outras personagens – Queremos assinalar mais algumas figuras femininas que se destacam nos admiráveis contos de Machado de Assis que, além de ser o maior romancista da Literatura brasileira, também é seu principal contista.
Assim, entre seus contos, encontramos personagens bastante significativas, como a ambígua Conceição de Missa do Galo; a caprichosa D. Benedita do conto homônimo; a perfeccionista Maria Regina de Trio em Lá Menor; o conjunto delicioso das Cinco Mulheres, publicado ainda em 1865, no Jornal das Famílias.
Eis aí um breve e modesto apanhado das principais figuras femininas que se movimentam na obra de Machado de Assis, tanto em sua fase romântica como em sua fase realista/naturalista.

Matéria publicada na LB – Revista Literária Brasileira, nº 17; reproduzida sob autorização de seu editor, Aluysio Mendonça Sampaio.